Pejotização e Dependência Econômica: Entre a Autonomia Negocial e a Precarização das Relações de Trabalho

Data de publicação: 16/11/2025

Resumo

O presente artigo discute o fenômeno da pejotização sob a ótica da autonomia privada e da dependência econômica, analisando seus impactos na configuração atual das relações de trabalho. Examina-se, a partir do direito comparado e de critérios objetivos de concentração de receita, em que medida a pejotização representa uma escolha legítima de profissionais hiperssuficientes ou uma forma disfarçada de subordinação e precarização laboral. Propõe-se, por fim, uma leitura equilibrada entre liberdade contratual e proteção social, identificando parâmetros práticos para distinção entre contrato comercial autêntico e relação de emprego encoberta.


Palavras-chave

Pejotização; Dependência Econômica; Direito Comparado; Hiperssuficiência; Relações de Trabalho.


1. Introdução

O debate sobre a pejotização — contratação de pessoas físicas por meio de pessoa jurídica para prestação de serviços — tem se intensificado na doutrina e na jurisprudência trabalhista brasileira. Embora o fenômeno se apresente sob a retórica da liberdade negocial e da desburocratização das relações produtivas, na prática, a linha que separa a autonomia empresarial da dependência econômica é tênue e frequentemente permeada por desequilíbrios estruturais.

O objetivo deste estudo é examinar os contornos jurídicos da pejotização, especialmente quando envolvem profissionais qualificados ou hiperssuficientes, e propor critérios objetivos para distinguir o exercício legítimo da autonomia da precarização travestida de empreendedorismo individual.


2. A análise material da relação de trabalho

A despeito das tentativas de relativização da subordinação — notadamente em contratações de alto nível —, o ordenamento jurídico brasileiro mantém como referência os requisitos  dos arts. 2º e 3º da CLT: pessoalidade, onerosidade, habitualidade e subordinação jurídica.

Ainda que o contrato formal indique uma relação entre pessoas jurídicas, o exame material continua a prevalecer. A jurisprudência trabalhista tem reconhecido que, na presença de poder diretivo, integração organizacional e ausência de risco empresarial, a forma contratual não impede o reconhecimento do vínculo de emprego. O próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral sobre a licitude da pejotização (Tema 1.389), o que denota a urgência de parâmetros objetivos e coerentes com a realidade econômica contemporânea.


3. Direito comparado e os critérios de monodependência

A experiência estrangeira oferece elementos valiosos para o debate brasileiro, notadamente ao introduzir limites quantitativos de concentração de receita como indicadores de dependência econômica.

Espanha: O Estatuto del Trabajador Autónomo define como Trabajador Autónomo Económicamente Dependiente aquele que obtém pelo menos 75% de sua renda de um único cliente, garantindo-lhe proteções específicas (contrato escrito, aviso prévio, pausas remuneradas e negociação por acordos profissionais).

Portugal: O sistema previdenciário impõe contribuição adicional ao tomador quando o prestador aufere mais de 50% de sua receita de um único contratante, e majora essa contribuição se o percentual ultrapassar 80%.

Alemanha: a jurisprudência sobre Scheinselbstständigkeit (falsa autonomia) considera a concentração superior a cinco sextos (aproximadamente 84%) em um único cliente como forte indício de subordinação disfarçada.

Itália: aplica o trabalho subordinado sempre que a prestação for pessoal, contínua e organizada pelo contratante.

Esses exemplos evidenciam uma tendência regulatória: não se proíbe a contratação via pessoa jurídica, mas estabelecem-se gatilhos de proteção quando a autonomia econômica se revela ilusória.


4. Hiperssuficiência e ausência de escolha: critérios analíticos

A discussão sobre o chamado trabalhador hiperssuficiente (art. 444, parágrafo único, CLT) não pode ser confundida com uma presunção de plena liberdade contratual. A verdadeira autonomia depende de dois eixos fundamentais: organização do trabalho e dependência econômica.


5. O limite dos 75% como barreira à contratualidade por adesão

A adoção de um limite objetivo — como o critério espanhol dos 75% — representa uma tentativa de diferenciar a contratação comercial autêntica da relação de adesão disfarçada. Trata-se de um mecanismo de regulação da autonomia privada, que não impede o exercício da liberdade negocial, mas a condiciona à existência de efetiva pluralidade econômica.


6. Proposta de parâmetros de governança e compliance trabalhista

Propõe-se, à luz da experiência comparada e da prática empresarial brasileira, um checklist regulatório para mitigação de riscos de pejotização fraudulenta:

1) Mix de clientes: monitorar anualmente a concentração de receita e reavaliar contratos que ultrapassem 75%;

2) Clareza contratual: prever remuneração por entrega, liberdade técnica e cláusula de não exclusividade;

3) Documentação de autonomia: registrar propostas e revisões de escopo;

4) Governança de conflitos: mediação ou arbitragem comercial;

5) Sinais de alerta: controle de jornada, benefícios e integração estrutural.


7. Considerações finais

A pejotização não é, em si, ilícita. O problema surge quando se transforma em instrumento de transferência de riscos sociais ao trabalhador sob aparência de autonomia negocial. Mesmo o profissional de alta renda pode ser vítima de dependência econômica e organizacional. A incorporação de critérios objetivos de monodependência, como os modelos de Espanha e Portugal, poderia oferecer ao Direito do Trabalho brasileiro um parâmetro intermediário entre a rigidez celetista e a ausência, enfraquecimento ou falta de clareza de normas, regras e valores compartilhados que deveriam reger as interações comerciais entre empresas. 


Referências

ESPANHA. Ley 20/2007, de 11 de julio, del Estatuto del Trabajo Autónomo.

PORTUGAL. Decreto-Lei n.º 66/2016, de 3 de novembro (Regime Contributivo dos Trabalhadores Independentes).

ITÁLIA. Decreto Legislativo n. 81, de 15 de junho de 2015.

ALEMANHA. Sozialgesetzbuch IV, §§ 7 e 8, e jurisprudência do Bundesarbeitsgericht sobre Scheinselbstständigkeit.

BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

STF, Repercussão Geral Tema 1.389 de abril de 2025 – 'Licitude da pejotização'



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